Vem aí o primeiro centro de tratamentos médicos experimentais dos Estados Unidos
Biotecnologia

Vem aí o primeiro centro de tratamentos médicos experimentais dos Estados Unidos

O estado da Montana acaba de aprovar um novo projeto de lei que permitirá o acesso a medicamentos e tratamentos que não são aprovados pela agência de saúde americana.

Um projeto de lei que permite que clínicas médicas vendam tratamentos não comprovados foi aprovado em Montana.

De acordo com a legislação, os médicos podem solicitar uma licença para abrir uma clínica de tratamentos experimentais e recomendar e vender terapias aos seus pacientes que não foram aprovadas pela agência norte-americana de Administração de Alimentos e Medicamentos (Food and Drug Administration, ou FDA). Após ser assinada pelo governador, a lei será a mais abrangente do país ao permitir o acesso a medicamentos que não foram totalmente testados.

O projecto de lei permite que qualquer medicamento produzido no estado possa ser aí vendido, desde que tenha passado pelos ensaios clínicos de fase I — os estudos iniciais, geralmente de pequena escala, realizados em humanos para verificar se um novo tratamento não é prejudicial. Esses ensaios não determinam se o medicamento é eficaz.

A lei, que foi aprovada pelo poder legislativo estadual a 29 de Abril e deverá ser assinada pelo governador Greg Gianforte, expande a legislação existente sobre o Direito de Tentar no estado. No entanto, enquanto essa lei foi originalmente criada para permitir que pessoas com doenças terminais tivessem acesso a medicamentos experimentais, o novo projecto de lei foi elaborado e defendido por pessoas interessadas em alargar a longevidade humana — um grupo de entusiastas que inclui cientistas, influenciadores e defensores da liberdade individual.

Eles esperam que o Montana funcione como um campo de testes para abrir o acesso a medicamentos experimentais. “Não vejo razão para que isto não possa ser adoptado pela maioria dos outros estados”, disse Todd White, dirigindo-se a uma audiência composta por decisores políticos e outras pessoas interessadas em longevidade, num evento no final do mês passado, em Washington, DC. White, que ajudou a desenvolver o projecto de lei e dirige uma organização de investigação focada no envelhecimento, acrescentou que “há algumas coisas que podem ser feitas a nível federal para permitir que as leis do Direito de Tentar se disseminem mais facilmente.” O Direito de Tentar é a possibilidade de acesso a terapias experimentais ainda não aprovadas pela agência reguladora.

Os apoiantes do projecto de lei afirmam que este dá aos indivíduos a liberdade de fazer escolhas sobre os seus próprios corpos. No mesmo evento, a bioeticista Jessica Flanigan, da Universidade de Richmond, afirmou estar “optimista” com a medida, porque “é sempre positivo quando alguém tenta devolver às pessoas a sua autonomia médica.”

Por fim, o grupo espera que a nova lei permita que as pessoas experimentem medicamentos não comprovados que possam ajudá-las a viver mais tempo, facilite o acesso a tratamentos experimentais para os americanos sem que tenham de viajar para o estrangeiro e, potencialmente, transforme o Montana num centro de turismo médico.

No entanto, especialistas em ética e estudiosos do direito não são tão optimistas. “Detesto isto”, diz a bioeticista Alison Bateman-House, da Universidade de Nova Iorque, sobre o projecto de lei. Ela e outros estão preocupados com a ética de promover e vender tratamentos não comprovados, e com os riscos de danos caso algo corra mal.

Nenhum medicamento foi aprovado para tratar o envelhecimento humano. Alguns, no campo da longevidade, acreditam que a regulamentação tem impedido o desenvolvimento de tais medicamentos. Nos Estados Unidos, a legislação federal exige que os medicamentos sejam demonstrados como seguros e eficazes antes de serem comercializados. Este requisito foi estabelecido na década de 1960, após a tragédia da talidomida, em que mulheres que tomaram o medicamento para enjoos matinais deram à luz bebés com deficiências, por vezes graves. Desde então, a FDA tem sido responsável pela aprovação de novos medicamentos.

Normalmente, os novos medicamentos passam por uma série de testes em humanos. Os testes de Fase I geralmente envolvem entre 20 e 100 voluntários e têm como objectivo verificar se o medicamento é seguro para uso humano. Se for considerado seguro, o medicamento é então testado em grupos maiores — de centenas e depois milhares de voluntários — para avaliar a dosagem e verificar se é realmente eficaz. Após a aprovação de um medicamento, os pacientes que o recebem por prescrição são monitorizados para detectar efeitos secundários. Todo este processo é demorado e pode levar mais de uma década — um ponto particularmente sensível para pessoas muito conscientes do seu próprio envelhecimento.

No entanto, algumas excepções têm sido feitas para pessoas com doenças terminais, ao abrigo das leis do Direito de Tentar. Estas leis permitem que certos indivíduos solicitem acesso a tratamentos experimentais que tenham passado pelos ensaios clínicos de Fase I, mas que ainda não receberam aprovação da FDA.

O Montana aprovou pela primeira vez uma lei do Direito de Tentar em 2015 (uma lei federal foi aprovada cerca de três anos depois). Em 2023, o estado expandiu a lei para incluir todos os pacientes — e não apenas os com doenças terminais — o que significa que qualquer pessoa no Montana poderia, em teoria, tomar um medicamento que tivesse apenas passado por um ensaio de Fase I.

Na altura, esta mudança foi celebrada por muitos entusiastas da longevidade, alguns dos quais ajudaram a elaborar a medida alargada.

Mas, na prática, a mudança não funcionou como haviam imaginado. “Não havia licenciamento, nem procedimentos, nem registo” para clínicas que quisessem oferecer esses medicamentos, diz White. “Era necessário outro projecto de lei que proporcionasse clareza regulatória aos prestadores de cuidados.”

Assim, a nova legislação aborda “como as clínicas podem estabelecer-se no Montana”, afirma Dylan Livingston, fundador e CEO da Alliance for Longevity Initiatives, que organizou o evento em Washington, DC. Livingston fundou a A4LI — como é conhecida — há alguns anos, como um grupo de lobby dedicado à ciência do envelhecimento humano e à longevidade.

Livingston, que está a explorar várias abordagens para melhorar tanto o financiamento da investigação científica como a alteração da regulamentação dos medicamentos, ajudou a desenvolver e impulsionar o projecto de lei de 2023 no Montana com o apoio do senador estadual Kenneth Bogner, segundo afirma. “Apresentei [a Bogner] uma lista de coisas que poderiam ser feitas a nível estadual… e ele adorou a ideia” de transformar o Montana num centro de turismo médico, afirma.

Afinal, como as coisas estão, muitos americanos viajam para o estrangeiro para receber tratamentos experimentais que não podem ser legalmente vendidos nos EUA, incluindo terapias caras e não comprovadas com células estaminais e genes, diz Livingston.

“Se vai viajar para fazer uma terapia genética experimental, é melhor que seja dentro do país”, diz ele. Livingston sugeriu que outros possam estar interessados em testar um novo medicamento concebido para eliminar células “senescentes” do corpo, que está actualmente a entrar na fase II de testes para uma condição ocular causada pela diabetes. “Primeiro: mantemos o dinheiro no país, e segundo: se eu fosse um milionário a receber uma terapia genética experimental, preferia estar em Montana do que nas Honduras.”

“Los Alamos da longevidade”

As Honduras, em particular, tornaram-se uma espécie de base para experiências relacionadas com a longevidade. A ilha de Roatán acolhe a clínica Global Alliance for Regenerative Medicine, que, juntamente com vários produtos de células estaminais, vende uma controversa terapia genética “anti-envelhecimento” não comprovada por cerca de 20.000 dólares a clientes, incluindo o influenciador milionário da longevidade Bryan Johnson.

O empreendedor tecnológico e entusiasta da longevidade, Niklas Anzinger, fundou também a cidade de Infinita na zona económica especial de Próspera, na região — uma cidade privada onde os residentes podem propor as suas próprias regulamentações médicas. Esta é a segunda vez que constrói uma comunidade ali como parte do seu esforço para criar um “Los Alamos da longevidade” na ilha, um local onde empresas de biotecnologia podem desenvolver terapias que retardem ou revertam o envelhecimento humano “a uma velocidade impressionante”, e onde os indivíduos são livres para tomar esses tratamentos experimentais. (A primeira comunidade, Vitalia, incluía um laboratório de biohacking, mas terminou após um desentendimento entre os dois fundadores.)

Anzinger colaborou com White, o entusiasta da longevidade que discursou no evento da A4LI (e é conselheiro da Infinita VC, a empresa de investimentos de Anzinger), para ajudar a redigir o novo projecto-lei do Montana. “Ele pediu-me ajuda para avançar com o novo projecto-lei, por isso foi isso que fizemos nos últimos meses”, diz White, que se formou em engenharia electrotécnica, mas deixou a sua carreira nas telecomunicações para trabalhar com uma organização que utiliza blockchain para financiar investigação sobre a extensão da longevidade humana.

“O Direito de Tentar sempre foi algo [para pessoas] com doenças terminais que tentam uma abordagem desesperada para resolver essas questões; agora as leis do Direito de Tentar estão a ser usadas para permitir o acesso antecipado a tratamentos,” disse White ao público no evento da A4LI. “Permitir que as pessoas utilizem medicamentos para a longevidade mais cedo é algo muito importante.”

O novo projecto-lei estabelece, em grande parte, a “infra-estrutura” para clínicas que pretendam vender tratamentos experimentais, diz White. Ele afirma que as clínicas terão de possuir uma licença, por exemplo, e que esta deverá ser renovada anualmente.

“Agora, alguém que realmente queira oferecer medicamentos ao abrigo da lei do Direito de Tentar poderá fazê-lo,” diz ele. A nova legislação também protege os médicos que prescrevem contra sanções disciplinares.

E o projecto-lei estabelece requisitos para o consentimento informado que vão além dos exigidos pelas leis actuais do Direito de Tentar. Antes de uma pessoa tomar um medicamento experimental ao abrigo da nova lei, será necessário fornecer um consentimento escrito que inclua uma lista de medicamentos alternativos aprovados e uma descrição do pior resultado possível.

Do lado da segurança

“Na lei do Montana, nós melhorámos explicitamente os requisitos para o consentimento informado,” disse Anzinger a uma audiência no mesmo evento da A4LI. Isso, juntamente com o facto de que os tratamentos terão passado por ensaios clínicos de Fase I, ajudará a manter as pessoas em segurança, argumentou. “Temos de tratar isto com um elevado grau de responsabilidade,” acrescentou.

“Obviamente, não queremos matar ninguém,” diz Livingston.

Mas acrescenta também que, pessoalmente, não se inscreverá para tratamentos experimentais. “Quero ser a décima milionésima, ou até a quinquagésima milionésima pessoa a receber a terapia genética,” diz ele. “Não sou assim tão aventureiro… Vou deixar que outros vão primeiro.”

Outros estão, de facto, preocupados com o facto de, para as pessoas “aventureiras”, estes tratamentos experimentais não serem necessariamente seguros. Os ensaios de Fase I são geralmente pequenos e frequentemente envolvem menos de 50 pessoas, todas tipicamente em boa saúde. Um estudo desse tipo não revelará muito sobre efeitos secundários que aparecem em apenas 5% das pessoas, por exemplo, ou sobre interacções que o medicamento possa ter com outros fármacos.

Cerca de 90% dos candidatos a medicamentos em ensaios clínicos falham. E cerca de 17% dos medicamentos falham nos ensaios clínicos em fases mais avançadas devido a preocupações com a segurança. Mesmo aqueles que passam por todos os ensaios clínicos e são aprovados pela FDA podem ainda ser retirados do mercado quando surgem efeitos secundários raros, mas graves. Entre 1992 e 2023, 23 medicamentos que receberam aprovação acelerada para indicações oncológicas foram posteriormente retirados do mercado. E entre 1950 e 2013, a razão para a retirada de 95 medicamentos foi “morte”.

“É perturbador que queiram tornar os medicamentos disponíveis após os testes de Fase I,” diz Sharona Hoffman, professora de direito e bioética na Case Western Reserve University, em Cleveland, Ohio. “Isso pode colocar os pacientes em risco.”

“É famoso que a primeira obrigação do médico é não causar danos,” diz Bateman-House. “Se [um medicamento] não passou por ensaios clínicos, como é que se pode afirmar que não causará danos?”

Mas os defensores do projecto-lei argumentam que os indivíduos podem tomar as suas próprias decisões sobre o risco. Ao falar no evento da A4LI, Flanigan apresentou-se como bioeticista antes de acrescentar “mas não me julguem, nem todos nós somos assim tão maus.” Ela argumentou que as actuais regulamentações sobre medicamentos impõem “uma quantidade massiva de restrições aos seus direitos corporais e à sua liberdade médica.” Porque é que os funcionários públicos deveriam ser os responsáveis por decidir o que é seguro para as pessoas? Os indivíduos, argumentou, devem ser capacitados para fazer esses julgamentos por si próprios.

Outros bioeticistas contrapõem que esta não é uma questão de direitos individuais. Existem muitas leis geralmente aceites sobre quando podemos aceder a medicamentos, diz Hoffman; as pessoas não podem beber e conduzir porque podem matar alguém. “Portanto, não, não tem o direito de ingerir tudo o que quiser se houver riscos associados a isso.”

A ideia de que os indivíduos têm o direito de aceder a tratamentos experimentais, na verdade, já foi rejeitada pelos tribunais dos EUA no passado, afirma Carl Coleman, bioeticista e académico de direito da Seton Hall, em New Jersey.

Ele aponta para um caso com 20 anos: no início dos anos 2000, Frank Burroughs fundou a Abigail Alliance for Better Access to Developmental Drugs. A sua filha, Abigail Burroughs, tinha cancro da cabeça e pescoço, e tentou, sem sucesso, aceder a medicamentos experimentais. Em 2003, cerca de dois anos após a morte de Abigail, o grupo processou a FDA, argumentando que pessoas com cancro terminal têm o direito constitucional de aceder a tratamentos experimentais e não aprovados, desde que esses tratamentos tenham passado pelos ensaios de Fase I. Em 2007, no entanto, um tribunal rejeitou esse argumento, determinando que indivíduos com doenças terminais não têm um direito constitucional a medicamentos experimentais.

Bateman-House também questiona uma disposição no projeto de lei de Montana que afirma tornar os tratamentos mais equitativos. Ela estabelece que os “centros de tratamentos experimentais” devem alocar 2% dos seus lucros líquidos anuais “para apoiar o acesso a tratamentos experimentais e cuidados de saúde para residentes qualificados de Montana.” Bateman-House diz que nunca viu esse tipo de linguagem num projeto de lei antes. Pode parecer positivo, mas, na prática, isso pode introduzir ainda mais risco para a comunidade local. “Por um lado, gosto da equidade,” diz ela. “Por outro lado, não gosto da equidade aplicada ao charlatanismo.”

Afinal, os médicos que prescrevem esses medicamentos não saberão se eles funcionarão. Nunca é ético fazer alguém pagar por um tratamento quando não se tem ideia se ele funcionará, acrescenta Bateman-House. “Esse é o modelo do sistema dos EUA: não há lucro sem evidências de segurança e eficácia.”

As clínicas estão a chegar

Qualquer clínica que ofereça tratamentos experimentais em Montana só poderá vender medicamentos que tenham sido fabricados dentro do estado, diz Coleman. “A lei federal exige que qualquer medicamento que vá ser distribuído no comércio interestadual tenha aprovação da FDA,” afirma ele.

White não está muito preocupado com isso. Montana já possui instalações de fabrico para empresas de biotecnologia e farmacêuticas, incluindo a Pfizer. “Essa foi uma das vantagens específicas [de focar] em Montana, porque tudo pode ser feito dentro do estado,” diz ele. Acredita também que a administração atual está “predisposta” a mudar as leis federais sobre o fabrico de medicamentos interestaduais. (O comissário da FDA, Marty Makary, tem sido um crítico da agência e do ritmo com que aprova novos medicamentos.)

De qualquer forma, as clínicas estão a chegar a Montana, diz Livingston. “Temos meia dúzia interessada, e talvez duas ou três que definitivamente vão instalar-se lá.” Ele não revela nomes, mas diz que alguns dos clínicos interessados já têm clínicas nos EUA, enquanto outros estão no estrangeiro.

Mac Davis, fundador e CEO da Minicircle, a empresa que desenvolveu a controversa terapia genética “anti-envelhecimento”, disse à MIT Technology Review que estava “a analisar a possibilidade.”

“Acho que isto pode ser uma oportunidade para os Estados Unidos e Montana dominarem realmente o mercado do turismo médico,” diz Livingston. “Não há outro lugar no mundo com este tipo de ambiente regulatório.”

Nossos tópicos